Vovozela tem a mania o hábito de recortar coisas interessantes dos jornais e separar para eu ler depois. Só que às vezes é beeem depois mesmo, e os recortes vão se acumulando pela casa e irritando o Papai Lu e até a mim também. Essa semana peguei em um desses recortes e era um texto interessante da Martha Medeiros, colunista do jornal O Globo, e gostaria de dividir com meus 5 ou 6 fieis leitores.
" A vida sem rodinhas"
(Revista o Globo - 19/set/2010)
"Lembro que nos momentos importantes da infância, e também nos desimportantes, meu pai estava sempre a postos empunhando uma máquina fotográfica. A consequência? A cada gaveta que eu abro aqui em casa, saltam fotos diversas, sem contar as que estão confinadas em álbuns e porta-retratos. Dessas tantas, há uma pela qual tenho um carinho especial: é uma foto em que estou andando de bicicleta, aos 5 ou 6 anos de idade. Naquele dia eu andei sem rodinhas pela primeira vez. Dei várias voltas sem cair, até que meu pai clicou o flagrante: a pirralha com a maior cara de vencedora, dona do campinho, se achando. Eu realmente estava degustando aquela vitória.
Se a foto tivesse legenda, seria: "Viu?"
As rodinhas são uma base protetora para iniciantes, uma segurança para quem ainda não tem domínio da coisa. Que coisa? Qualquer coisa. Me corrija se eu estiver errada: a gente usa rodinhas até hoje.
Quando se escreve um livro, por exemplo, as rodinhas são as cenas não inventadas, o sentimento de verdade, vivido, com o qual a gente ampara a ficção.
Quando se tem um filho, as rodinhas são a herança da educação que nossos pais nos deram, a parte hereditária que, mesmo questionada, sustenta nossas primeiras decisões.
Quando nos apaixonamos, as rodinhas são a repetição de certos clichês, a partilha dos nossos ideais e certezas, mesmo sabendo que em breve entraremos em terreno movediço, desconhecido.
Quando se aceita um emprego, as rodinhas são a nossa experiência anterior, o que facilita a arrancada, mas depois é preciso andar sozinho.
Sempre chega a hora de tirar as rodinhas. Medo e êxtase.
Viver sem elas torna tudo mais perigoso, vulnerável e, ao mesmo tempo, emocionante. Nos faz voltar a ser crianças: será que estou agindo certo, será que estou indo rápido demais ou lento demais? Atenção: lento demais, cai.
É preciso saber viver sem um suporte contínuo para que se possa firmar o próprio caráter. Quem não sai da barra da saia da mãe nunca consegue se equilibrar sozinho. Quem não solta a mão do pai não vira homem.
Quando é que sabemos que estamos aptos a andar por nossa conta? Se o assunto é bicicleta, aos 5, 6, 7, até os 10 anos, dependendo do ritmo e da estabilidade de cada um.
Quando se trata da vida, também depende. Mas usá-las para sempre nos impede de sentir o gostinho de conseguir, de vencer, de atingir nossos objetivos por mérito próprio.
Nos impede de provocar: "Viu?"
Nada nos dá tanto orgulho do que mostrar aos outros - e a nós mesmos - o quanto podemos."
Eu ia até escrever mais algumas palavras, mas diante desse texto lindo acho que seria até ousadia. Vale a reflexão...